terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Meu vizinho, o senhor Jargão

Todos os dias religiosamente às nove da manhã, senhor Jargão descia a Rua das Bromélias no seu passo coxo, arrastando o chinelo Havaianas de tiras fixadas por tachinhas, as pernas fatigantes de quem viveu demasiado em pé sob o sol escaldante da vida difícil na roça. Saudava roufenho as vizinhas mexeriqueiras que se encontravam matinalmente perante a casa de dona Alzira. Três senhoras septuagenárias portando a frente de seus corpos vassouras (como quem tem diante de si pedestais e microfones numa opereta da alcovitagem), ele sempre com um jargão enigmático aos ouvidos desatentos que dele, e quiçá da malandragem cotidiana nada compreendiam. Porém, no fim das contas tinham todos um significado intrínseco. -“Bom dia! Hoje a bruxa ta solta.” E seguia. Cambaleante. A montar a vida que via como quem monta um quebra cabeça. A entender e se relacionar com o mundo usando as peças que conhecia. Os jargões. Encarquilhado, os passos vagarosos de quem leva na coluna uma vírgula, entrava no bar do Benedito a bradar: - “Oooopa cabocro! Mas será o Benedito? – e ria de sua própria graça, antes rir da troça do que chorar a desgraça. -“ Vamu devagar com o andor, que o santo é de barro! Me da uma dose daquela’gua que passarinho num bebe!” Depois da terceira dose de água ardente, arrotando um sopro quente de estomago aziago, espremia seus olhos embotados, uma mistura tragicômica de senilidade viril e cachaça mineira lhe turvando as vistas. E rindo de si mesmo atabalhoado proferia: - “Essas véia tudo tem olhar de secar pimenteira. E te digo mais. Quem com porco se mistura farelo come!” Tirava do bolso da bermuda marrom andrajosa, sua preferida entre duas únicas peças que possuía, uma bolsinha de moedas feita de pano xadrez, presente modesto dado por uma amiga do bingo. - “A cavalo dado não se olham os dentes!” dizia ele de olhos fechados, entre pausas do seu refluxo gastroesofágico. Pagava o bom moço, adjetivo dado ao tal caboclo por conhecer lhe bem o caráter, e saia porta afora. Subia a escorar nos portões das casas, um sorriso sem dentes de quem já não liga o abandono da dentadura e quiçá festeja o abraçar da gengiva nua, cantarolando a canção do Adoniran Barbosa: “O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás, Nós fumos, não encontremos ninguém, Nós voltermos com uma baita de uma reiva, Da outra vez, nós num vai mais, Nós não semos tatu!” E entre um silêncio e outro no meio da letra, depois de uma introspecção fugaz, gargalhava e dizia: -“Pau que nasce torto nunca se endireita!” E ria que se mijava.

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