quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

As manhãs chuvosas

As manhãs chuvosas sempre foram minhas favoritas. São reminiscências de uma memória antiga, maltrapilha. São vestígios de uma idiossincrasia imersa num torpor de falta de sono, de uma apnéia no surrealismo de uma vida ébria. O murmúrio lúgubre nas goteiras, o dia vestindo sua roupagem cinza como de luto observasse as pessoas absortas, cada qual com suas preocupações, cada um com sua dor particular, em nada, como o individuo gosta e se faz acreditar, peculiar. Circulam indo e vindo como seres autômatos que são, presumindo se donos do próprio destino. Dirigem se para a monotonia do lugar comum, continuam o ciclo vicioso de suas vidas frívolas. Acordei com o tamborilar dos pingos na janela. Não tinha noção das horas. O tempo, essa abstração inexpugnável que a tudo assiste. Vê o caminhar do homem com seu orgulho altivo, este imaginando se criatura divina de uma humana comédia entre bestas feras. O tempo, letárgico sorri. Com seus dentes amarelos e pútridos, sedentos das horas dos homens como vampiros boquissescos, como o demônio sorrateiro espreita numa fresta. A tristeza me apetece. A felicidade veja bem, é uma invenção insidiosa. Posto dessa forma é possível se deleitar com a brevidade da vida e quiçá então, eu sobreviva ao meu destino. O despautério reside nessa busca incessante por um estado de espírito de alegria interminável. É possível que um estado de graça incomensurável lhe sugue a melancolia e lance o numa inércia absoluta? Isso ecoa como blasfêmia nos ouvidos alheios, preocupados como estão em sua minuciosa procura doentia por algo que não se conhece além de sua nomenclatura. Fazer do corpo uma cidade eternamente feliz. Compulsória como de certo é nos dias de hoje, o mantém num estado de entorpecimento, aprisiona lhe o espírito num casulo onde reina o cotidiano enfadonho. Tantos livros nas prateleiras das livrarias com inúmeros títulos diferentes tendo o único objetivo prático de lhe reservar um embuste. E os autores enchem o rabo de dinheiro. Feliz cidade. Quando eu era criança lembro-me de ter um cachorro. Meu pai, crescido nas lavouras do interior e aprendiz do meu avô em matéria de patriarcado, ambas as criaturas inveteradas no machismo não eram muito dados ao afeto, para nossa estranheza havia adotado aquele animal numa dessas lojas que vendem bichos como se fossem de pelúcia, mas vivos. Adotou porque o cachorro não possuía pedigree. Não é de boa raça, disse o funcionário estrábico, nosso vizinho. Caso contrário, poriam nele uma etiqueta com preço e falariam sobre seus descendentes e todos os prêmios e honrarias recebidas pela linhagem dos quais nenhum cachorro, baseando se no que sabemos do raciocínio de tal animal, se vangloria. Adônis. Deu se o nome logo se viu as fuças do filhote. Batizou a minha mãe, mulher altiva, de olhos azuis e cabelos cacheados a lhe cobrir os ombros, amante da filosofia e professora de história numa escola publica. Contrastes gritantes de caráter, meu pai e ela não poderiam ser mais antagônicos. Estranho desígnio a união desses dois. Uma mulher sem paciência, no entanto. Irritava-se com as minhas insistências de que o pobre animal vinha a ter conversas comigo. Confessional, o bicho dizia-me assuntos que eu nunca pensaria por mim mesmo. Que saberia eu daquelas coisas? Não, quem contou me foi o cão. Não o diabo. Pois esse também é nome que se dá ao demônio. Cão. Aliás, li certa vez que ele tem 117 alcunhas. Rabo de seta, Cramunhão, Coisa Ruim, Capiroto, Tinhoso, Tranca Rua e por ai vai. Nem nome nem existência. Tudo não passa de uma invenção humana. Bode expiatório de nossas atrocidades. Culpar o outro por aquilo que está em nós é apanágio da espécie humana. Na bíblia diz se que usavam dois bodes, um para o sacrifício outro o expiatório. Este ultimo era tocado na cabeça por um sacerdote, que confessava todos os pecados israelitas e assim os enviava pra o deserto. Para que tempos depois voltasse a se pecar novamente. E assim se sucede nos dias de hoje, todavia o animal já é outro. E existem aqueles que são mandados para o deserto da pobreza, da miséria, essa desgraça em que caíram porque nela foram jogados, e os que são sacrificados na prisão de seus empregos. Eu vivo a ambivalência da liberdade e da condenação. A de ter nascido demasiado humano.

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