sábado, 22 de novembro de 2008

I've been walking

Ligo o radio antes de jogar o molho de chaves sobre a mesa mogno, como de costume.
O locutor, com sua rouquidão de fumante inconfundivel na voz, anuncia entre um merchandising Sonic Youth interpretando The Carpenters.
Cansaço.Ombros curvados.Olhos fundos nas orbitas.Caminho a passos pusilânimes até a estreita cozinha de azulejo imundo, besuntado.Abro uma garrafa de vinho seco, que tinha sido esquecida na geladeira sabe-se la quantos réveillons, em meio a legumes e frutas fétidas, murchas, degradando-se no seu mundinho invisivel de micro-organismos.Os pedaços de cadaver, o que restou de um bovino e duas cabeças de peixe, exalando seu cheiro putrido em decomposição.Leite azedo.Resto de refrigerante sem gás.Algumas latas de cerveja.
Duas baratas ensandecidas encontram-se sobre a pia, entre pratos e talheres acumulados, restos de comida numa marmitex, trocam informações rapidamente e partem febris em disparada.
Volto a sala sorvendo o vinho em longas goladas.A boca seca a medida que bebo.
Bitucas espalhadas pelo cômodo, me intriga como amiude transbordam dos enormes cinzeiros.Grandes cortinas plissadas, azul escuro, cobrem as janelas. Todo o chão do hermético apartamento é revestido de tapete.Ácaros fazem sua festa às escondidas.A luz do abajur é de um amarelado funesto, projeta sombras bruxuleantes nas paredes.O cheiro rançoso impregna o ar.Sufoca.Alguns quadros, réplicas de grandes artistas.Caravaggio, Picasso, Velásquez.Mobilia antiga, obsoleta.Herança dos avôs maternos, italianos vindos na decada de 30.
Constitue-se assim o cenário de uma vida lúgubre.
Tateava nas trevas em busca de uma beleza que no mundo não existe.Não essa costumeira alegoria de corpos esculpidos que vemos estampados em revistas da moda que observo assim blasé.Não.Algo que transcende. Acreditava eu em toda minha ignorância cega, não haver quem satisfaça esse meu desejo.Narcisista vê a flor do seu ego paulatinamente murchando, as pétalas se desfazem, viram pó.O que resta é esse boneco de pano sem viço que rasteja com seus andrajos de auto comiseração, sonhando a mágica fantasia de se tornar humano.A piada se constroe sobre o trágico.
Era natal, panfletos de esperança misturavam-se numa dança tétrica ao vento pela calçada suja.Anúncios de lojas de moveis, empréstimos de dinheiro, quiromantes, consórcios de veículos, perfumarias, grupos de ajuda no combate ao câncer.Auto-falantes anunciando liquidações, ofertas imperdiveis, promoções pague quanto e como puder.Há de tudo que se possa querer, uma miríade de esperanças sortidas nas aléias.Luzes de neon e cores rutilantes entre colunas de aço e concreto que se elevam.Morada dos que se esquecem facilmente das pessoas das quais amiude tentam andar sobre, e dessa mesma gente esquecida numa sarjeta de segregação como cadáveres putrefatos.Que festeja, que faz dessa mesma arma, o esquecimento, residência das horas tristes.Adornos e apetrechos se espalham pela cidade cinzenta num contraste que celebra uma data sem muita importância pra maioria das pessoas.Lar de ricos ordinarios e vagabundos na farra.Fala-se mais do Papai Noel do que de Cristo.Nos bares a algazarra, fornicação dos simios em bando, entornando garrafas de etilicos, cuspindo frases insossas de tão mastigadas.Universitarias debatem Nietzsche enquanto pintam as unhas.
Vermelho vivo.Vermelho sangue.Vampiros.Velhos comunistas ferrenhos e suas ideologias residindo nas cinzas.Balbuciam.
Prostitutas fingindo orgasmo entre paredes boloradas de um motel barato.Cheiro de sexo.Esperma nas coxas roliças da moça.Boêmios discutem futebol em rodas de butequim.Respiro, o mundo me atordoa.
Mentalizo, deja vu, transeunte absorta em seus pensamentos consumistas, elegante em sua maquiagem sóbria, cabelo preto escorrido na altura do ombro.Passa sob marquise de um prédio dito arquitetura moderna e adentra a porta.Rebola numa desenvoltura de caminhar altivo, a calça justa numa silhueta de nádegas proeminentes.Gucci, Dior, Channel, Valentino, Prada, Versace, são estes os nomes de seus anseios.Lábios carnudos sobressaem no batom vermelho gritante.O que eles querem que você queira.Pobre alma que não cabe a mim defini-la.A perfeição que atrai olhares avidos, concupiscentes, o ilusório satisfazer insaciáveis prazeres da carne.
A libido, a felação, o coito, o profano.Você se envergonha, porque deseja avidamente aquilo que proibiu a si mesmo.Escolhas.Celibatarios se regozijam masturbando, cedem às tentações na frenesi entorpecente de uma ambivalência.Redenção no autoflagelo.Pra mim são ambas formas de obter prazeres.Pedófilos vestindo batinas se escondem sob o altruismo das causas sociais.
Toca a cruz dourada numa corrente que adorna o pescoço e faz uma prece.Na porta da igreja, saída da missa, remoendo sua descrença.
Prefiro morrer na cocaína a viver o tédio de ser supérfluo.
O saber existir que em mim nunca houve.Existir de maneira que não seja do avesso.Sonho continuo que não me apetece.Me eleva residir numa felicidade simploria de nada sentir.Lacônica como o momento de um beijo em despedida.
Deveria eu perceber que entretanto, algumas despedidas nunca terminam.Doem pelo que sobrar da sua existência.Latejam nos escombros.
A alegria, por sua vez, nunca dura.
Papo de gente depressiva, disse o analista.Que sou eu bipolar.Que isso e aquilo e o que mais se possa tirar de seus livros de receitas.Assou-me uma delas em um forno de ideias pre moldadas.Me vendeu diversos rótulos.Fórmulas prontas.Meu nome não é mais Paulo, Daniel ou Jonas.Nenhum desses me pertence.Atendo agora com nome de doença, um transtorno.Me (des)orientam com livros de auto ajuda.Uma dieta de pílulas que me deitam em vicio.
Ele mesmo, o analista, diverte-se com outros do seu meio, ricos, bem sucedidos profissionais dos mais variados ramos...viboras...entupindo suas arterias de pó e vinho.Riem de mim.
Desde que comecei a escrever, sob prescrição medica, porque por mim mesmo me manteria quieto, deitado no divã como que num ventre a gerar utopias, inerte, notei o quanto as ideias são confusas.Escrever é quase como um grito.Meu paliativo.Endorfina.
Nas noites muito escuras, como se a sombra cega do dia não me bastasse, continuava minha procura.Era taciturno e desprovido de fé, por que haveria de ser diferente?
Minha luz ate então era uma realidade vista a distância num universo paralelo.Do outro lado do espelho eu via Alice."Cortem sua cabeça!" gritava a rainha.Lia inúmeros livros e me deliciava na expectativa de me tornar fictício.O que importa ao individuo continuar sua trajetoria, se tudo o que lhe sobra são sonhos vistos de uma janela longínqua ?
Perfídia a qual me lanço quando afirmo nada sentir.Afronta a mim mesmo, a pouca verdade que possa haver esbarra num insulto.Tanta coisa sinto eu.
Passeava pelos corredores obscuros de uma consciência entulhada de gente vazia, memorias fotográficas como fantasmas num subsolo, meus olhos embotados de uma tristeza implícita.Lembranças desfilavam como alegorias, minha visão desfoca, sinto a boca seca, taquicardia, as mãos tremulas.Síndrome do pânico.Pânico de ter síndrome.Síndrome da síndrome, pânico de ter pânico.Insuficiência respiratória.Medo.Inspire, expire.Relaxe.
Ouvindo a musica lenta, o piano numa lamuria de ranger de dentes, afastava todas ideias bêbadas que me assolavam.Inspire, expire.Relaxe.
A voz da minha mãe.Eu parecia mergulhado dois metros de profundidade numa piscina de agua turva.E crescia tal sensibilidade na proporção de me achar, de repente, no oceano, entre seres abissais com suas formas exuberantes e luminescência surrealista.Quiçá o inverso.Também soa muito bem.Formas luminescentes e exuberâncias surrealistas? Formas surrealistas e luminescentes exuberâncias ?
Que diria a voz? A da musica eu compreendia muito bem, limpa e altissonante.

I've been walking through the park
I've been walking in the dark
I've been walking in the rain
I've been walking with so much pain
I've been walking in the sun
And it's bought me so much fun
Lyin' on a beach
Darkness out of reach
The world is not so cold
But still it makes me fold

(Archive - "fold")

Me sirvo uma dose de wisky.Duas pedras de gelo.Energetico.Mais uma caprichada na dose.Cocaina.Acendo um charuto.Euforia.Subterfúgios.Diga-me algo novo.
E era isso, estar só nesse invólucro que a mente insiste abandonar.Se expandir num infinito desconhecido de verdades impossíveis.Devaneio.A realidade não possui os tons pasteis dos filmes românticos.É bruta.Dolorida.Espasmodica.Veridica.
A luta do ser humano é patetica.Genetica.Ludibria quem pouco pensa e quem muito pensa nada vive.Ou se alimenta do hipotético intangível.A vida é agora.Urgente.Desesperada.Frenética.
Charles Darwin vomita no inferno condenado pagão.Hitler, Che, Lênin, Nietzsche, Kurt Cobain, Morrison, dançam ao redor dele de mãos dadas entoando cânticos satânicos.É o que me fazem crer.Verdade comprada, seu troco é uma hóstia.Apenas sorrio e sigo adiante, cantando.Charlatanismo permeia entre as massas.Acendo um cigarro manufaturado por essas minhas mãos inseguras, de dedos finos, cadavéricos, observando a pele que a reveste.Me lanço na névoa densa e nociva a me perder dentro de mim.O tempo é uma incognita, esfarelando o presente ate restar a poeira do passado a cobrir as coisas.Encontro-me, como se num estalo repentino, num deserto escaldante a servir minhas visceras num banquete aos abutres.Indio sorri no caminho de volta, mão dadas com um demônio.Acordo de sobressalto, ofegante, sudorese.Cocaina a vazar dos poros.Uma lambida no antebraço.Estico outra carreira.Led Zeppelin.

"Queen of Light took her bow, And then she turned to go,
The Prince of Peace embraced the gloom, And walked the night alone.

Oh, dance in the dark of night, Sing to the morning light.
The dark Lord rides in force tonight, And time will tell us all.

Oh, throw down your plow and hoe, Rest not to lock your homes."

(Led Zeppelin - "the battle of evermore")

Tateava errante nas sombras, como sempre tinha feito nos dias que se arrastam, quando senti abruptamente mãos suaves e quentes a tocar as minhas.Eram trêmulas, no entanto, como num frenesi, um anseio desesperado por abrigo, sôfregas em seu desespero mudo, solitario.Como o naufrago na sobrevida cambaleante.Que ha anos alimenta uma expectativa cáustica de
salvar-se.Minguante no tempo.Crescente na dor e angustia.Sofimento indescritivel em palavras, tão bem traduzido num urrar insano que reverbera na noite cálida.
Lua cheia.Brilho sobre a areia da praia.Calor a fustigar os miolos.Tédio a estourar os tímpanos.
As ondas quebram numa respiração sem tregua.Sufoca-lhe as horas.
Suponho que era a mesma sensação, vibrante, radioativa, que exalava de mim.Avidos pelo sangue putrido de quem ja não tem mais vida, vive o simulacro de algo parecido, os noctivagos bebedores de sangue farejam a desgraça alheia.
Suicida no limiar do abismo, na iminência do ato irreversivel.Segue-se efeito perceptivo nos corações alheios.Nunca presumiu ser amado? Por fim se resume a isso? Amor? Uma necessidade dissimulada?
Toda a dor gerada por um anseio de cópula metamorfoseada em um nome romântico.Piegas.
Choro convulsivo a derramar-se.Saudade antecipada no velar.Desistência tardia, vista pelos olhos mesquinhos de quem se foi.Recebido pelo semblante intrigado de Schopenhauer nos portões do inferno.
Nada era visivel no submundo que habitava, imerso numa escuridão claustrofobica a caminhar em tropeços.Somente o tato me dava a impressão imprecisa do que me cercava.


-continua...

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