quarta-feira, 11 de março de 2009

Find a quiet place


Tuti era um garoto franzino. Braços cadavéricos sob enormes camisetas com nomes de grupos de rap. Vestido sempre com calças largas que denunciam cuecas a mostra. Cabelo black e adidas vermelho. Sotaque nordestino carregado de gírias do gueto. Nascido entre a malandragem no labirinto claustrofóbico da favela, habituado ao dia a dia de confrontos no inferno. A morte caminha pelas vielas sorrindo de encanto.

Quinze anos de idade. Deles, quatro dedicados ao tráfico. Esquálido garoto negro de periferia agindo sorrateiramente pela Praça da Sé. Estereótipo do marginal aos olhos dos sociólogos. Segregação urbana. Racismo em ebulição nas veias evapora pela pele.

Tuti caminha com desenvoltura por entre toda essa gente apressada na efervescência dos seus afazeres cotidianos. Fones de ouvido num volume gritante. Evita-se o burburinho incessante que lhe dói nas têmporas. Racionais MC.

“Fale o que quiser, o que é é
verme ou sangue-bom tanto faz pra mulher
não importa de onde vem nem pra que
se o que ela quer mesmo é sensação de poder
com um ladrão fez rolê se envolveu sei lá saiu
mas ou menos em abril curtiu quem viu, viu
em Maio foi vista de RR a mil
na BR no frio, com boyzão da Civil, viu
uns e outros aí bom rapaz
abre o coração e sofre de mais
conversa com os pais ali no sofá da sala
ouvi e dá razão enquanto ela fala
e fala, cai no canto da sereia
vê que ele é firmão igual um prego na areia
prego, jogou o égo, dentro de um buraco
um Bom Vivant jámais, mostra o ponto fraco...”

Dia cáustico e seco. Previsão de chuva nos telejornais.

Jovens com seus malabarismos nos semáforos. A miséria e a desgraça transparente nos rostos sujos. Transeuntes se espremem numa apresentação de capoeira.

Marco Zero. Catedral. Office boys e aposentados matando tempo. Professores, metalúrgicos e desempregados se esbarram na aglomeração. Momentos fugazes de encontros desprezados. Camelôs anunciam produtos da pirataria. Pague um leve dois.

Fervorosos pastores apregoando aos ouvidos pressurosos. O fim do mundo se aproxima. Reforma do pensamento. Submissão.

Gente humilde bebendo cachaça nos bares. Entopem as artérias com seus salgadinhos oleosos. Engraxates cheiram cola.

Matutar sonhos coloridos num universo dentro de si mesmos. Prostitutas descarnadas e de seios caídos dançando de maneira vulgar no limiar de botecos. Crianças maltrapilhas de estômago vazio implorando esmolas. Ciganas tentam iludir as senhoras com sua quiromancia. A trapaça é uma arte herdada nesse caminho de sobrevivência.

Ebulição nas ruas. A Disneylândia dos indigentes.

Tuti permanece atento. Oitenta e três papelotes de cocaína nos bolsos e seis carreiras entupindo seu nariz. Mastiga um chiclete irrequieto. Desliga o aparelho mp3 que trocou com um viciado qualquer e senta-se desconfortável num banco sentindo mau agouro. Observa, enquanto acende um Marlboro, uma mãe bater na filha pequena. A mulher segura a criança e sacode-a pelos braços franzinos como uma boneca de pano. Impaciência. Lugar comum no cenário a que pertence.

Hoje as vendas foram ruins.

O demônio envia seus soldados à procura de vitimas. Eles vestem fardas e se denominam justiça. Decidem sobre sua liberdade. É preciso prudência. Muitos deles se infiltram entre os civis.

Pensamentos sinistros lhe perseguem como moscas em dias de verão. Desde que assassinara o idoso com um bando de viciados e lhe roubara o dinheiro, ouvia vozes num sussurro enlouquecedor. Fardo de um remorso que até hoje desconhecia.

Paranóia cresce como um animal insano a lhe arreganhar os dentes.

Três dias se passaram. Dias enclausurados numa construção abandonada no convívio demente do crack.

Sabia por experiência própria que a amizade é medida pela quantidade de dinheiro no bolso. Maldita hora em que decidiu seguir o amigo. Abstinência dita o ritmo, aponta o caminho. Praguejava contra si mesmo, Deus e a vida. Mundo caótico e desprovido de sentido.

Fome, pobreza, pestes e guerras. Nenhuma dor é insignificante. Por menor que seja.

Sentia o cheiro acre do seu próprio suor. Fluxo caótico de idéias enlouquecendo sua mente.

Quando acabaram-se as drogas e o dinheiro, viu a si mesmo boiando na superfície de um dilacerante vazio. O desconforto que consecutivamente toma conta do espírito e lhe sufoca. Agonia muda a expandir-se dentro dele. Explode num urrar insano, gutural.

Matou o amigo com uma facada nas costas.

Aquela dor inexprimível de culpa tomava forma, alastrava-se como metástase. Tomar-lhe-ia o corpo todo ate que se tornasse amorfo.

E o que fazer em relação aquele cara? Sentia certo receio. Não gostava dele.Aspecto lunático. Parecia impregnado com um fedor de cadáver. Cheiro de morte aglutinado como uma segunda pele. Lembrou-se de uma película em preto e branco onde um maníaco assassinava uma garota no chuveiro. Uma das cenas mais famosas da historia do cinema reencenada de maneira pífia no banheiro em reboco do que seria uma casa. Muda-se os personagens mas não o desfecho.

Vida esvaindo-se nos olhos incrédulos e opacos do amigo.

“Assassino!” - ouvia o sussurro inquiridor de dona Bené, tia do morto e benzedeira da comunidade. Focou os pensamentos de volta no estranho.

Sujeito pálido como que exangue, cansados olhos azul. Trajava sempre uma camiseta preta com nomes de banda e jeans desbotado. All Star branco, cabelo preto escorrido na altura do queixo.

“Roqueiro viciado de merda” ele pensava. “Não durava um dia na quebrada”.

Inteiramente díspar dos moradores da favela. Temática destoa.

No entanto era um ótimo freguês. Assiduamente comprando cocaína em boas quantias.

Taciturno e apreensivo. Olhava freneticamente de um lado a outro com curtos movimentos de cabeça.

“Ele me reconheceu, tenho certeza!” ponderava o menino. “O filho da puta ate jogou um quadro sobre a gente.”

Ouviu um rugido distante. Sobressaltou-se.

Trovões. Nuvens negras se desenrolavam no horizonte como tapetes a engolir paulatinamente o céu límpido. Dali algumas horas choveria. Junto vinha também o frio.

“O homem da previsão acertou de novo” – pensou.

Tirou do bolso um celular Nokia. O relógio digital marcava em vermelho 11h45min.

Numa sexta feira comum, mesmo nesse horário, já teria vendido metade da droga. Muitos dos consumidores eram universitários, taxistas e motoboys. Incrível como tantas pessoas, dos mais variados tipos e classes sociais usam drogas. Entopem-se de cocaína e álcool nos seus estúpidos rituais de festejo.

“O mundo sem drogas é uma coisa sem graça.” – refletiu ele.

Sentiu a visão turva. Levantou-se aturdido esfregando as mãos trêmulas sobre os olhos. Não sentia-se bem. Taquicardia. Pernas titubeantes. Respirou fundo algumas vezes e abriu os olhos. De volta ao normal.

Seguramente no final da tarde o sujeito iria aparecer. Resolveu por fim a sua insegurança.

“De hoje ele não passa”. Traçou um caminho imaginário, uma fuga rápida. Evapora-se. Apenas mais um na multidão.

O rapaz sentaria ao seu lado, algumas poucas palavras ao léu e quando menos esperasse, rasgaria-lhe a garganta com seu punhal. Livrar-se-ia de uma possível alcaguetagem.

Ficaria afastado da praça por alguns dias ate que as coisas se acalmassem. Telefonaria para sua irmã Suelen. Alguém precisava dar noticias ao patrão. Diria que foi em legitima defesa.

“O filho da puta tentou me roubar!”

Sentia saudades de casa. Da mãe.

Encontraria abrigo no lar de Teresa.

Morena dos olhos verdes e longo cabelo cacheado. Corpo voluptuoso escondido sob os compridos vestidos de evangélica. Moça séria, estudiosa. Três anos mais velha. Freqüentava os cultos da Assembléia de Deus. Apaixonou-se por ela, um sentimento recíproco. Logo na primeira vez que a viu desejou-a como mulher para o resto dos dias. Ponderou sobre casar e ter filhos. Fugir daquele universo em desencanto. Desmoronava sobre ele o peso desumano de um alicerce de incerteza e medo.

Almejou uma outra vida que não essa.

Nenhum comentário: